domingo, 16 de julho de 2017

se eu tivesse morrido aos 20 anos

domingo, 16 de julho de 2017

Se eu tivesse morrido aos 20 anos, hoje não estaria morando perto, perto mesmo, de um parque com um fio d’água que corre sonolento e constante. É perto dele que eu me sento para contemplar a natureza, alma absoluta do mundo. Somos formiguinhas em uma imensa floresta. Olho os pássaros que se exibem na copa das árvores. Uma teia de aranha reluz com os raios do sol. Pequenas plantas nascem em frestas da calçada de paralelepípedos. Palavrinha grande, meio complicada para quem está aprendendo a ler e a escrever. Para facilitar, na infância eu chamada de chão de pedra. Isso me lembra um momento, desses bons, que me marcou. Eu e meu irmão um dia tentamos colocar um prego entre essas pedras para que um pneu furasse. Não qualquer pneu. Era o do caminhão da madeireira que vinha todo dia, no final da tarde, cheio de troncos de árvores. Me sentia uma guerreira que lutava em favor das araucárias. Nunca conseguimos furar nada, as araucárias continuaram sendo cortadas e hoje estão em extinção.
Se eu tivesse morrido aos 20 anos, não teria andado de avião. Não contive o choro na primeira vez em que voei. Não de medo ou de dor nos ouvidos.  Só lembrava do Milan Kundera falando sobre nuvens. Aliás, se eu tivesse morrido aos 20 anos, não teria relido Kundera, não teria ficado apaixonada por suas histórias. Ao lado da asa, só pensava em ultrapassar a linha onde estava escrito ”não pise”.  Me imaginava correndo para o abraço do céu, tendo como trampolim a asa de um avião. Nesse dia eu vi o por do sol lá de cima. A senhora que estava ao meu lado perguntou: ”primeira vez?”. ”Sim”, eu disse com um sorriso tímido. Primeira vez ou não, sempre escolho sentar na janela. Gosto de traçar desenhos imaginários nas nuvens. Fico imaginando cenas, a vida acontece. As nuvens são boas companheiras para a reflexão.
Se eu tivesse morrido aos 20 anos, não teria experimentado tapioca, uma goma com gosto de pouca coisa e que eu gosto de comer com queijo.  Depois que provei, deixei de comer tapioca por um ano. Não queria, seria uma traição com aquela tapioca. Costumo me referir aos meus amigos de acordo com a cor que eu penso que combina com eles, que os refletem para mim. Tive uma flor amarela, amiga apaixonante, vibrante, que irradiava luz. Um dia, em uma manhã ensolarada e em uma cozinha bagunçada, ela fez tapioca para mim. Serviu a mesa, tinha café. Com suas mãos pequenininhas ela pegou a frigideira, polvilhou a goma e esperou. Não tinha queijo, comemos sem. A melhor tapioca da minha vida. Flor amarela morreu um ano depois. Não queria tirar o gosto nas minhas lembranças do que seria uma tapioca dela. Só fui comer tapioca quando a dor no peito tranquilizou-se. Hoje como se estivesse ao lado da minha flor amarela. Quero que a sensação seja a mesma, mas não é. Não fico triste por isso. A vida apenas é.

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